dezembro 04, 2006

O guardião e suas ferramentas

Quase em frente ao Quarto do Poeta, no segundo andar da Casa de Cultura Mario Quintana (CCMQ). É ali que pulsa o coração que dá vida a todos os andares desse centro cultural de Porto Alegre. Necessário, imprescindível. E quase um milagre o fato de uma única pessoa dar conta do serviço sozinha. Sete andares na ala oeste, seis andares na ala leste. E uma média de 40 mil visitantes por mês, passeando por todas as salas, visitando as galerias, assistindo a filmes e peças de teatro.

A frase do diretor da Casa, Sergio Napp, já virou lugar comum, de tanto ser repetida. "Todo mundo pode sair. Mas se o Seu Vitor for embora, a Casa pára." E, a cada dia, um novo pedido. Um cano que estourou, um reparo no calçamento, uma lâmpada queimada, uma fechadura emperrada. É assim que Seu Vitor vai abrindo todas as portas. Sendo o responsável pela a manutenção da Casa, cuidando dela como se fosse a sua própria. Ele abre a entrada, para que eu conheça sua vida.

A história da CCMQ iniciou em 1983, quando uma Lei do Estado do Rio Grande do Sul transformou o falido Hotel Majestic em local para a cultura. A história de Vitor Julio Pereira da Costa começou bem antes disso, em 08 de dezembro de 1954. Primogênito de uma família de seis filhos, nasceu em Guaporé e mudou-se com a família para Porto Alegre com apenas um ano de idade. Na Capital, morou em diferentes locais. "Mudávamos muito de casa. Mas quando chegamos na Restinga, não deixei mais minha mãe se mudar", conta.

Seu Vitor quase não fala. Ou, para os desapercebidos, parece quase não falar. Pode passar por alguém no corredor e abaixar a cabeça. Mas, se correspondido com uma saudação, abre um sorriso fácil. Boca, dentes e olhar que retribuem rapidamente o carinho espontâneo recebido. Então, ele anda mais rápido, geralmente carregando alguma ferramenta ou utensílio. Talvez queira preservar o momento. Ou não atrapalhar. Ou simplesmente se entregar a essa timidez que está estampada no seu rosto. Segue e entra na primeira porta ou corredor.

Companheiro, nunca nega uma ajuda. Mesmo com a agenda lotada de tarefas. Pede cinco minutos, uma hora no máximo, e atende o apelo. Solicitude que conquista os colegas de trabalho ou as pessoas que circulam pela CCMQ. Seu Vitor usa calça jeans e camiseta. Às vezes um boné. Nas outras, mostra o cabelo encaracolado curto e escuro. Ele é negro, alto e magro. É ágil, sobe em escadas, alcança os cantos mais difíceis de certos andares. Mas uma queda prejudicou sua performance. Até hoje manca um pouco com a perna esquerda. E não vai ao médico. Resiste o que pode, foge mesmo dos consultórios. Pelo menos até que os irmãos façam uma assembléia familiar. Daí não tem mais jeito. "Fui obrigado. Eles vieram até aqui e me buscaram para a consulta e os exames." Fala isso brincando, como se tudo não passasse de 'arte' de criança.

Bem que sua sala na Casa de Cultura poderia ser o lugar perfeito para brincar. Durante horas. O local funciona como uma central de operações, almoxarifado, e sala de recordações. Pode pensar em algo. Deve ter ali, com certeza. Ferramentas, rolos de papel higiênico, metros de fio, fotos do Seu Vitor trabalhando, espelhos, quadros de pinturas, santinhos, e muitos armários, que formam uma estrutura quase labiríntica. No armário cinza de ferro, uma das portas guarda a memória. Ali estão todos os comprovantes de pagamento, as duas carteiras de trabalho, extratos, recibos. Uma vida inteira de papéis guardados em pastas e plásticos. “Olha aqui. Comecei a trabalhar na Casa em 1993. No ano seguinte, ganhei um cargo em comissão”, explica, segurando uma folha e esticando o braço para longe, para driblar a necessidade de óculos.

Hoje, ele percorre os corredores do centro cultural, conduz a bola, despista os zagueiros, dá toques mágicos, chuta a gol e sacode a rede. Não há o que ele não faça. De hidráulica a elétrica. Gosta de lembrar que aprendeu com alguns mestres do ofício, que trabalhavam na CCMQ desde a sua inauguração em 1990. "Seu João, Seu Luiz e o Vazenton me ensinaram muito. Aprendi coisas que não sabia, e aprendi também que se não sei, posso ficar acompanhando quem sabe, e daí aprendo. Na próxima, é comigo!"

Seu Vitor começou a trabalhar, ainda menino, como engraxate. Circulava perto do campo de futebol do Grêmio no bairro Azenha. E ficava por ali para ajudar os motoristas de táxi que jogavam bolão no início da noite. Fazia um troquinho. Uma foto dessa época, mostra o pequeno Vitor de cabelos compridos. Compridos demais. "Chamaram o fotógrafo um pouco antes da minha mãe me levar ao barbeiro para cortar o cabelo. Foi promessa", relata. Sua saúde era frágil, e dona Maria Luiza prometeu não cortar o cabelo do filho até que completasse sete anos. Nessa época, ele já circulava sozinho pelo Centro e outros lugares da cidade.

Quando jovem, ainda ficou internado por dois anos em um colégio na cidade de Carazinho, trabalhou com um chacreiro japonês que plantava cravos e alfaces, e foi verdureiro negociando caixas de uva e réstias de cebola. Mais uma vez, aproveitou uma oportunidade e, quando uma série de obras começou na Restinga, ele e um irmão carregavam baldes de água para distribuir aos pedreiros que sofriam com o calor do verão e com o sol. Foi contratado como servente de obra em dois toques. E, depois de freqüentar um curso no Senai, começou a trabalhar como pedreiro e ganhar por hora. "Sabe aquele prédio aqui no Centro, que era do Brizola? Trabalhei nele desde a fundação", conta.

Depois de atuar como zelador de alguns edifícios, foi funcionário de um depósito de bebidas. Como não era promovido, pediu demissão e aceitou fazer trabalhos extras e temporários. Num desses, foi construir as beiradas das duas cúpulas do antigo Hotel Majestic. Trabalho feito, recebeu elogio do diretor da CCMQ pela rapidez e eficiência. "E aí arrumaram uma boca para mim aqui", brinca.

Seu Vitor trabalha muito. Mas reconhece que já trabalhou mais. Agora, a rotina da Casa de Cultura é calma. Mesmo assim, não sobra tempo para perceber certas lendas e mitos do lugar. Como os fantasmas que, dizem, circulam pelo elevador ou nas salas mais remotas. Complicado para ele, é lidar com espectros da vida real. Ele não se lembra do próprio pai. Tinha cinco anos quando Seu Luiz faleceu. Na sua lembrança, ficaram gravadas uma festa de aniversário, uma traquinagem e a tunda que levou. "Mas da fisionomia dele, eu não lembro nada."

Com a voz calma, e os olhos sem me fitar, diz que não possui filhos legítimos. Talvez um, um menino. Mas nunca conheceu. Um pouco por desleixo, um pouco por vergonha. A ex-namorada contou da criança e perguntou se ele iria olhar filho. Ele não foi. "Ela arrumou um cara e foi morar em Viamão. No fim, ficou por isso mesmo", confessa. Um dia, encontrou no Centro o rapaz e o padrasto. Os três se olharam. Vitor reconheceu traços seus no rosto do filho. "Ele é mesmo a minha cara." Mas nenhum dos dois esboçou intenção de conversar. E ele deixou novamente a situação assim.

Há 18 anos, conheceu Vera Lúcia. Ele trabalhava de zelador em um prédio na Rua Anita Garibaldi. Ela era a empregada de um dos apartamentos. Estão juntos desde então e Seu Vitor adotou os dois filhos dela, Fabiano e Ângelo. "Essa é a minha família".

Os chamados não param. Na porta, no ramal interno, no recado de um funcionário. É demanda quase viva. O dono do café do sétimo andar quer trocar a pia. O banheiro do segundo andar precisa de reparo. De chave de boca na mão, Seu Vitor corre até lá, para evitar que o cano estourado inunde alguma sala ou mesmo o corredor. Antes disso, dá um sorriso e pergunta se eu ainda tenho tempo. Respondo que sim. Ele me pede que aguarde o seu retorno. "Esse é recém o começo. Eu ainda tenho muita história pra te contar".

setembro 09, 2006

Vida ambulante em busca do sonho constante

Como é que é? É claro que não resta dúvida. O interessado pode perguntar a qualquer um, sem correr o risco da resposta ser diferente. Qualquer um, mesmo. Pode ir lá, eu garanto. Gregório é um dos donos da Rua dos Andradas. Comanda o trecho no Centro de Porto Alegre situado entre a Bento Martins e a João Manoel. Uma área conhecida pelos restaurantes de bife com batatas-fritas a cinco reais, o clássico ala minuta. Mas não pense que é bandido ou chefe de gangue. Muito longe disso. Pode ser considerado o síndico da quadra, a pessoa a quem todos os perdidos e achados recorrem.

Em frente à sua banca, protegida por um guarda-sol e incrementada por uma cadeira de couro e rodinhas, ele vende produtos de beleza há mais de 18 anos. Vende Pierre Alexander e Avon para ser mais exata. Desodorantes, cremes, perfumes e maquiagens para detalhar ainda mais. No mesmo ponto. Ih, não desacredita, não. Pode ir lá ver. É fácil reconhecer o Gregório. Está sempre de botas de cano médio, jeans e, quando está frio, várias camisas de lã e casaco sobrepostos. Possui grandes suíças, cuidadosamente aparadas. Na orelha esquerda, um brinco de prata, e na cabeça, uma vasta cabeleira prateada e bem escovada. Eu até brinco com ele. Lembra um pouco o Elvis. Sabe?

Ele costuma saudar todos os passantes, sejam moradores, clientes, senhoras e, até mesmo os cachorros da rua. Até dos "totós" e "fifis" o Gregório é parceiro. Fica sempre repetindo: "Tudo bom, senhor? Tudo bom, senhora?"

Dizem que ele já fez muita coisa na vida. Eu sei que o nome completo dele é Gregório Carlos Arambarri Rutigliano. Nasceu em Salto, no Uruguai, em 1946, e faz aniversário no dia 11 de março. Sim, é do signo de Peixes e canhoto. O que faz dele um grande articulador social, criativo e sensível. Uma pessoa e tanto.

Passou grande parte da infância em Paso de Los Libres na Argentina. Ele sempre conta que, quando Perón retornou ao poder, prometeu vingar-se dos uruguaios que moravam em território argentino. Sua família, então, voltou para o Uruguai, e Gregório fez professorado, especializando-se em tornearia mecânica na Escola de Arte e Ofício da Universidade de Trabalho do Uruguai.

Sei. Você já deve estar pensando: um torneiro mecânico que virou ambulante? E o que vai achar quando eu contar que ele já foi cantor de orquestra? Ou melhor: cantor em várias orquestras? A primeira delas surgiu na década de 60, chamada Los Dardos. Gregório cantava e criava as composições. Morando em Rivera, criou o Grupo R, formado por cinco músicos, que tocavam guitarra solo, guitarra rítmica, contrabaixo, bateria e teclado. Pela proximidade com a fronteira do Brasil, ele cantava músicas em português, especialmente Roberto Carlos. E, com um repertório de canções melódicas, ganhou vários festivais nos anos de 68 e 69.

A aventura musical de Gregório ainda rendeu outra banda, a Orquestra Tropical, com 12 músicos e ritmo centro-americano. E também, não posso deixar de mencionar, o seu primeiro filho. Ele brinca o tempo todo, falando de sua fase de sedutor. “Todo o músico picoteia aqui, picoteia ali e, na palavra, o cantor tem tudo”. Foi assim que ele conquistou o coração de Teresa Sonia Cros Pedecert. Ela era contadora na Prefeitura e seu pai, um dos donos da Rádio Rivera. Por intermédio dele, o Grupo R gravou um disco. O relacionamento não deu certo, e Alan Michel está hoje com 37 anos e mora em Montevidéu.

Gregório sempre foi muito namorador. Ele confessa isso, e admite ter amado duas mulheres ao mesmo tempo. Ele conta que, se fosse por ele, ficava com as duas, que todo mundo diz que não pode. Ele jura de pés juntos que pode sim. Mas, depois que casou com Celina Irma Ruiz, não teve jeito. Passou a ser fiel e acha que fez uma boa escolha. Conheceu Celina no Consulado do Brasil em Paysandú.

Nessa época, Gregório praticava artes marciais, e trabalhava na Marinha como fuzileiro naval. Estava com o porte mais atlético. Então, foi natural a sugestão do Cônsul para que os namorados viessem trabalhar no Brasil. A única condição: viajariam somente casados. A cerimônia foi providenciada e o casal passou um ano e meio trabalhando no Rio de Janeiro. Gregório como motorista e segurança do Embaixador José Sete Câmara, e Celina como acompanhante da embaixatriz.

Gregório não leva desaforo para casa. Tem jeito de invocado e encrenqueiro. Quando o relacionamento com o embaixador estava desgastado, eles fugiram com o apoio da governanta. Foram passar um tempo em Brasília, na casa de um amigo também uruguaio que era porteiro no Itamaraty. Ele diz que, nessa época, pensavam em voltar para Paysandú. Mas a irmã de Gregório, que é brasileira nascida em Uruguaiana, convenceu o casal a morar em Porto Alegre. E pensar que eles estão no Brasil há 28 anos.

Olha, não foi fácil, não. Gregório fala que chegou aqui e não encontrou nenhuma das maravilhas prometidas pela irmã. O jeito foi morar num apartamento com um grupo de pessoas, e ganhar a vida. E como ele ganhou. Virou funcionário de uma empresa e passou a vender títulos de clubes sociais. Percorria a pé diversos bairros da cidade. Sem descanso, de domingo a domingo. Ele ensina para todo mundo aqui na rua. “Quando a gente vai fazer algo, já se deve pensar nos resultados”. Gregório pensou. A primeira coisa, como ele fala, era assegurar o teto. Ou seja, comprar uma casa. Ele teve tanta perseverança, força de vontade e garra no trabalho que, em cinco meses, comprou à vista uma casa na Vila Monte Cristo, perto da Vila Nova. A família mora lá até hoje.

Eles foram construindo a casa. Dizem que é grande. E que, quando uma parte dela estava encaminhada, Gregório e Celina tiveram um filho. Yônatan Franchesco tem 17 anos. Para garantir o sustento da família, agora ampliada, ele se aventurou por muitos outros caminhos. No fim da década de 80, comprou uma máquina de overlock, sem conhecimento ou prática de costura. Sabia, é claro, pregar botões e coser meias. Foi desmanchando inteiramente um moletom que ele aprendeu a costurar outros.

Passou vários meses comprando tecidos, costurando durante a madrugada e vendendo os produtos nas lojas da cidade. Quando a concorrência aumentou, não teve receio. Desistiu da confecção, e comercializou quadros por um período. Quadros? Sim, fotos emolduradas de artistas como Xuxa, Bob Marley e Charles Chaplin.

Esse estilo de vida de vendedor, permitiu a Gregório conhecer muita gente. Foi um desses amigos, também vendedor de rua, que sugeriu que ele investisse em um novo ramo: cosméticos. Deu certo. De segunda a sexta-feira, ele ocupa o mesmo ponto, em frente ao restaurante Veredas, lugar onde guarda todo o seu material.

O visual desse uruguaio mostra ainda mais. As luvas de couro sem dedos, os óculos escuros, os apetrechos especiais. Muita gente se pergunta onde ele estaciona a moto no Centro. No entanto, poucos sabem que esse era um sonho antigo, que demorou para ser concretizado. Mas que foi possível depois de mais de 20 anos de economias. Em dezembro de 2005, Gregório comprou sua moto, que ele também pagou à vista. Não qualquer moto. Uma especial, estradeira. Uma Honda Shadow 600 cilindradas, para que ele pudesse experimentar ainda mais liberdade. E a celebração do anseio? Uma viagem sobre duas rodas até o Uruguai com o filho Yônathan. Mais de 600 quilômetros de uma trajetória que parece sempre retornar ao início, com os pés no presente e metas bem estabelecidas.

Nesse ponto, depois de tudo o que eu já revelei, você deve estar se questionando: onde estão os problemas? Onde está o conflito? O drama? Isso eu digo. Eles estão ali, onde sempre estiveram, na vida de todas as pessoas que trabalham, batalham e sobrevivem. Mas no Gregório, todas essas coisas ruins ficam escondidas, atrás do seu amplo sorriso e de sua força de vontade, camufladas pelas mãos que doam, mas que também colhem frutos. Ele, que costuma ajudar as pessoas que passam pelo Centro, diz que não sabe o que seria da Rua dos Andradas sem sua presença. Eu digo mais: não sei o que seria do mundo sem pessoas que arriscassem, se aventurassem e conquistassem o próprio espaço como o Gregório.

julho 31, 2006

A lenda do cowboy guitarrista de coração doce

Ele entra tímido no palco. Cabisbaixo, esconde o rosto sob um chapéu de cowboy. Verifica o amplificador, e olha para os lados procurando rostos conhecidos. Caminha até o pedaço do palco iluminado pelo canhão. Sem tempo para reflexões ou arrependimentos, saca a palheta e atira contra a platéia o acorde mais alto que seu instrumento pode emitir. O som que é o prenúncio de uma letra que fala de amor, de sentimentos e de vivência. Porque, para ele, música é isso mesmo: uma espécie de exorcismo e uma reunião de amigos.

Em 2005, Jimi Joe completou 30 anos de carreira como músico. Figura clássica do rock gaúcho, conquistou seu lugar como guitarrista de diferentes bandas e também como jornalista especializado na área cultural. Possui ombros largos, um corpo de estrutura forte e sua fisionomia é séria. Um primeiro julgamento explicitaria toda a brabeza e rebeldia de um astro do rock. Sisudez ressaltada pela grossa armação preta dos seus óculos de grau, e pelos cabelos ralos e raspados. Um cara verdadeiramente mau. Mas quando a conversa inicia, pode-se estar num café, bar, show ou qualquer calçada da Cidade Baixa, tudo muda. A muralha se desfaz depois do primeiro sorriso, do primeiro causo sobre os colegas dos estúdios ou das redações, e da primeira referência musical sobre diferentes assuntos.

– Na realidade, tudo isso é timidez. Tenho medo de me envolver com as pessoas, pois me apego e acabo magoado. Mas sou do tipo parceirão.

O CD já está posicionado no aparelho. Pode apertar play.

FAIXA 1 – Não precisamos ficar loucos / Só atingir o estado ideal

Jimi Joe nasceu no dia 07 de julho de 1955, em Arroio Grande, cidade do Interior do Rio Grande do Sul. Na certidão de nascimento, constava o nome Arzelindo Ferreira Neto, uma homenagem ao avô paterno. Filho de uma professora e de um sargento do exército, é o caçula de uma família de dois filhos e uma filha. Sempre encabulado, teve dificuldades de se relacionar na escola e, durante muito tempo, estudou em casa, com a mãe. Em 1963, aos oito anos de idade, após o divórcio dos pais, se mudou para Pelotas, época que ficou cristalizada em sua memória.

– Foi o ano mais feliz da minha vida. Saí da cidade pequena e pude curtir minhas tardes com Coca-cola, biscoitos e cinema.

FAIXA 2 – O teu sorriso, minha fortaleza / A tua voz uma cascata de luzes

Nesse período, também descobriu outra paixão: o rádio. Adorava acompanhar as notícias pelo aparelho da tia, ouvir as músicas e se impressionar com as coberturas jornalísticas, como a realizada na morte do Presidente dos Estados Unidos, John F. Kennedy. Depois de um breve retorno a Pedro Osório, a mãe decidiu que era o momento de acabar com as idas e vindas no relacionamento com o marido, e mudou-se com os filhos para Porto Alegre. O grande primeiro desafio de Arzelindo foi atravessar a Avenida Protásio Alves na Capital.

FAIXA 3 – Não vou me iludir / Fingindo que foi bom / Não foi legal pra mim

– Tive ainda mais dificuldade para me enturmar em Porto Alegre. Cheguei a passar um ano inteiro sem freqüentar o colégio. Foi quando aprendi datilografia e comecei a ouvir rádios que tocavam rock, como Pampa e Continental, a primeira rádio rock gaúcha.

Por insistência da mãe, voltou a estudar para completar o Ginásio. Matriculado no Colégio Rio Branco, freqüentava as aulas à noite, e convivia com colegas cinco anos mais velhos. Foram essas amizades que lhe proporcionaram a primeira experiência com drogas. Arzelindo experimentou LSD aos 13 anos, no Bar Trianon, conhecido restaurante de Porto Alegre que serve baurus.

– Eu tinha muita curiosidade de experimentar, principalmente por causa dos Beatles e das lendas de John Lennon com o alucinógeno.

Cliente assíduo do Cine Rio Branco e do Cine Atlas, passou grande parte da adolescência com os olhos vidrados no telão, conferindo os programas duplos das matinês de domingos, com muito tiro, faroeste e bang-bang para todos os lados.

FAIXA 4 – Quem sabe eu bebi / Quem sabe eu estou louco / Quem sabe eu te ame

Em 1969, Vera, a irmã de Arzelindo, comprou um violão. Juntos, cantavam as músicas de protesto que circulavam na época. Ela ainda estava aprendendo a tocar e, para garantir a posse, ele era proibido de pegar o instrumento. Canhoto, teria que mudar a posição das cordas para executar qualquer nota. Agüentou durante um tempo, crescendo como músico na clandestinidade familiar e tocando a partir da inversão das cordas. O segredo durou pouco. Logo, Arzelindo declarou um Golpe de Estado na irmã e trocou as cordas do violão, assumindo o instrumento.

Arzelindo começou a compor em 1974, mesmo ano em que se formou no segundo grau e assistiu o primeiro show de rock no Teatro de Câmara. Estimulado por esse universo recém-descoberto, começou a beber, principalmente Cuba Libre, a fumar e a sair à noite mesmo sem companhia, em busca de boa música.

Leitor do jornal O Pasquim e fã de Bob Dylan, ele despejava nas composições toda a angústia e rebeldia que muitos também viveram durante a Ditadura Militar.

– Depois de conhecer o Roda de Som, projeto que rolava à meia-noite no Teatro de Arena, criei coragem e fui mostrar as minhas letras engajadas para o Nelson Rolim, organizador do evento e que havia substituído o mentor do projeto, Carlinhos Hartlieb.

FAIXA 5 – Saia pra comprar cigarros / E não volte mais

As canções estavam rabiscadas em um caderno espiral. Arzelindo tinha o hábito de não passar a limpo, pois a mania de perfeição tornava a finalização de um texto ou letra quase impossível. Para participar do projeto, o único requisito era autorizar as músicas com a censura. O resto estava garantido.

– Quase todas as músicas foram censuradas. Mas o Rolim me bancou mesmo assim. Só que nada estava garantido: bateu aquele medo de me apresentar na frente de todo mundo sozinho.

Através da indicação de uma amiga, Arzelindo foi até um gabinete da Assembléia Legislativa e se apresentou para o João Antônio, vocalista e futuro criador do Discocuecas. Depois de uma breve conversa, João chamou o vizinho e violonista Alexandre Vieira. O trio estava formado.

– Fiquei muito nervoso. Tomei um porre de Drink Dreher e, já na primeira música, erramos tudo. Aí foi aquele silêncio e alguém da platéia gritou: ‘Vai de novo que tá do caralho!’. Foi aí que comecei a me divertir com a história da música.

FAIXA 6 – Tudo de novo pra eu reaprender / Talvez assim eu possa me salvar

Em 1975, Arzelindo já tinha cursado algumas cadeiras de composição e regência, curso ministrado pela Universidade Federal. Acabou desistindo, e retomou a paixão pelo rádio, passando no vestibular para Jornalismo na PUC. A carreira de jornalista e músico foi seguindo caminhos paralelos na vida dele. Mas a personalidade de Jimi Joe acabou assumindo o controle. O apelido surgiu da referência natural ao guitarrista canhoto mais famoso da época, Jimi Hendrix.

– Confesso que ainda não aprendi quem é Jimi Joe. Mas ao abandonar o Arzelindo e me rebatizar, me livrei de muitas coisas como as culpas da Igreja Católica e o alcoolismo sempre presente na minha família. Eu tinha medo dos outros, e essa nova pessoa que surgiu me deu coragem.

FAIXA 7 – Lutar pela revolução / Lutar pela revolução

Como jornalista, Jimi trabalhou de redator da Rádio Farroupilha, de repórter dos jornais Folha da Manhã, Folha da Tarde, Correio do Povo, Zero Hora e Diário do Sul, de editor das páginas de música do Caderno 2 do jornal O Estado de São Paulo e de editor de discos da revista Playboy. Também atuou como produtor na Rádio Ipanema FM e na Rádio 107.1 FM, além de ter traduzido livros para a Editora L&PM.

O mercado acabou se tornando um vasto campo para conhecer pessoas e fazer contatos preciosos. Através do trabalho nas redações, ele produziu matérias com seus ídolos do rock, expressou seu gosto pela música clássica e pela literatura, e colecionou momentos inesquecíveis.

– Entrevistei David Bowie. Foi uma conquista. Os dez minutos autorizados previamente pelo agente dele, se transformaram em 25 minutos. E melhor de tudo: foi ele que ligou para a minha casa. Sim, Bowie ligou para a minha casa!

FAIXA 8 – Passamos por tempos de guerra e paz, / Crime e castigo, não importam mais agora que tudo...

Mas, de acordo com ele, foi a vida na música que fez total sentido, principalmente para recarregar as baterias ou buscar consolo após uma demissão ou os longos períodos de desemprego. Em 1982, Jimi integrou um grupo que fazia mais bagunça do que revolução: O Grito paira sobre nossas cabeças. A idéia era misturar música e performances relâmpagos nos corredores da Faculdade de Comunicação da PUC. Jimi cantava e ajudava a erguer o Super Candidato Voador, colega indicado pela turma para a presidência do diretório acadêmico. No entanto, o primeiro projeto oficial de Jimi Joe foi a banda Quem tem QI vai, um mistura louca de chorinho, samba e rock and roll, criada por Luiz Carlos Rettamozo e com Cristo no baixo, Carlos Branco no violão, Rango na bateria e Teddy e Jimi nas guitarras.

– Fizemos shows durante mais de um ano. E tivemos força até do Eduardo Dusek, que assistiu uma apresentação nossa. Usávamos maquiagem e roupas bizarras, e chegamos até a fazer um show no Teatro Presidente.

FAIXA 9 – Meu bem você me deixa sempre sonhando / Quem sabe você me deixa ser do seu bando

Foi no Bar Marcelina que surgiu a banda que Jimi Joe considera a mais maluca e mais divertida: Atahualpa y us Panquis. Alguns CDs de punk rock, busca por integrantes em bares como o Escaler e muita porrada depois, estava formada a barulheira do inferno com os guitarristas Jimi e Paulo Nequete, o tecladista Gordo Miranda, o baixista Flávio Santos (Flu), e o baterista Castor Daudt.

– Ninguém sabia tocar. Fazíamos barulho e tocávamos de qualquer jeito. E os shows eram surreais. Chegamos a nos apresentar na praia de Capão Novo, para um público formado por crianças, adolescentes e velhinhas. E nunca vou esquecer da imagem de um menino, não tinha mais do que seis anos, que fez uma roda punk sozinho na areia.

FAIXA 10 – Nem sabia o que oferecer em troca / De tanta vida, tanta emoção

A banda inteira cabia num Gol. E o carro circulava por diferentes estradas, sendo testemunha de caçadas a cogumelos no meio do mato e de naves espaciais tentando abduzir músicos.

A diversão era a regra básica. Tanto que, oficialmente, Atahualpa y us Panquis é uma banda que nunca acabou. Com um LP gravado, Agradeço ao Senhor, o grupo pode ressurgir em qualquer lugar do planeta, desde que um dos integrantes originais esteja presente. Esse é o acordo.

FAIXA 11 – Agora é tarde já aconteceu / Tarde demais eu já falei adeus

A música ficou um pouco afastada de Jimi durante o tempo em que morou em São Paulo. Os paulistas consideravam sua guitarra nervosa demais, e ele se dedicou ao jornalismo. De volta a Porto Alegre, em 1994, ele conheceu alguns cowboys na Cidade Baixa que, literalmente, tornaram-se sua família. Com a banda Os Daltons, Jimi sentiu-se à vontade para assumir seu lado country e expressar tudo o que sentia através de folk rock. O rock da família Dalton foi disseminado por todo o Pampa. James Dalton (Jimi Joe), Julius Dalton (Júlio Reny), Cris Dalton (Cristiano Varisco) e William Dalton (Wolney Campos) fizeram shows por todo o Estado durante quase seis anos.

– Os Daltons salvaram a minha vida várias vezes. Na época, eu estava mal de grana. A estrada acabou sendo a melhor terapia que existe, e a banda era o meu suporte.

FAIXA 12 – Nosso amor, meu bem / É um mal crônico

Jimi também participou de bandas como Justine, que gravou um CD em 2004 pelo Fumproarte, e Acretinice me Atray, que gravou Era uma Vez um Gato Xadrez.

Em Porto Alegre, o rock gaúcho costumava ser propriedade de poucas pessoas. Dizem inclusive que, desde os anos 80, a cidade possuía oito músicos e 25 bandas. Todos participavam do projeto de todos. E, isso acabava criando laços de cumplicidade e amizade muito fortes. Jimi Joe foi vivendo e se divertindo e afirma que, se não fosse a diversão com os amigos não teria feito nada.

FAIXA 13 – Você anda pela rua / E as pessoas estão / Completamente perdidas

– Tocamos pra nós mesmos, mesmo que o público não seja bom. As pessoas que não fazem música não entendem. Música é como alimento.

Esse sentimento de necessidade extrema pela música fez com que Jimi sempre se alimentasse da fonte, ao mesmo tempo em que não criou a preocupação de eternizar o momento. Ele achava que poderia guardar na memória todas as canções de amor e de protesto, as parcerias, as aventuras nos palcos ou fora deles. Mas a comemoração dos seus 50 anos de vida despertou em amigos como Wander Wildner e, em especial, Astronauta Pingüim, o estímulo para que Jimi produzisse o primeiro CD solo. Saudades do Futuro foi lançado em 2005, e traz muito da melancolia que o roqueiro vive nos dias atuais. É como o refrão triste de um blues, que conta a história de um homem que começa a fechar as contas de sua própria vida.

Gravado em um estúdio de São Leopoldo, na Região Metropolitana de Porto Alegre, o disco traz os clássicos de Jimi Joe, muita poesia inspirada em Bob Dylan, violão, baixo, bateria e um pouco de piano aqui e acolá. Um ponto final de muita coisa que o músico viveu e a consagração de sua musa inspiradora: Keli. Pois essa é uma história de rock, e sem uma musa, não existe um astro.

FAIXA 14 – Saudade... eu sinto apenas / Do teu sorriso e olhar azul / Blue...

Jimi Joe e a jornalista Keli Lynn Boop foram casados por mais de seis anos. Passaram por grandes dificuldades e grandes conquistas juntos. E, mesmo separados, também estiveram de mãos dadas num dos momentos cruciais da vida de Jimi. No início de 2003, ele estava fraco e mal conseguia trabalhar. Ao procurar um médico especialista, foi constatado o que muitos anos antes havia sido um alerta. Em 1979, depois de um acidente de moto, Jimi Joe descobriu que possuía rins policísticos. Assim como sua mãe, poderia sofrer de insuficiência renal. A doença evoluiu e tornou indispensável três sessões semanais de hemodiálise, de quatro horas de duração cada. O susto, deu lugar ao pavor e à sensação de fragilidade.

– Tentei me adaptar ao máximo à nova realidade. Saio do hospital e toco a minha vida, faço música, faço sexo. Não quero ficar preso a isso.

FAIXA 15 – Demorou mas ele conseguiu abandonar o ninho / Demorou mas ele aprendeu a voar sozinho

Saudades do Futuro é um disco de exorcismo. São vários recados que tomaram a forma de música e que contam uma trajetória que, segundo o seu personagem principal, nunca estará concretizada em livro. É um disco triste, um bitter sweet rock, que registra a história sob o ritmo da guitarra e também festeja a amizade das inúmeras pessoas que passaram pela vida de Jimi Joe, e para as quais ele gostaria de prestar uma homenagem e deixar um adeus sincero. Com certeza, o músico ainda vai brindar com champanhe muitos aniversários do Bar Ocidente na Osvaldo Aranha, única ocasião em que ainda se permite beber. No entanto, essa era a oportunidade de deixar ainda mais explícito o seu orgulho de ter participado de uma geração de roqueiros com uma pluralidade característica.

– Vou continuar fazendo música. Alguém vai me ouvir. Senão, foda-se. Pelo menos eu cantei e a tristeza foi embora.

Depois de 15 faixas e de uma apresentação memorável e sensível, o CD de Jimi Joe pode estar terminando. Mas é nesse momento que cabe uma ressalva. Sempre existe a tecla repeat, para reviver tudo de novo. Ou play, começando do zero e apresentando um show completamente diferente. Pausar é que não pode. Deve-se seguir em frente, pois a vida é para ser curtida. Porque aprendizado também é rock and roll. E disso, a música está repleta: lições de vida, de companheirismo, de trabalho e, acima de tudo, de diversão. Jimi Joe agradece toda a experiência que teve. E se sente à vontade para dar o primeiro passo no caminho que leva de volta para casa. Ele não está sozinho. E a mensagem se manifesta na voz da Keli, que termina a última música do disco.

Ele era só, como aquele que caminha no deserto ao sol do meio-dia
Que não tem nem a própria sombra para acompanhá-lo
De repente, tudo era como se nunca tivesse sido
E alguma coisa no meio do caos prenunciava uma paz infinita
E então era como o céu na terra e ele entendeu, afinal, que não havia por que seguir tão só
Eu sorri e disse: Veja bem, eu fiz por você muito mais do que faria por mim.


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* As frases das faixas que ilustram esse texto foram retiradas das músicas do CD Saudades do Futuro, de Jimi Joe.

Contato do Jimi - jimijoe007@hotmail.com

maio 02, 2006

Hummm

Teste, teste, teste... Resolvi criar um blog novo. O 50kg está assumindo níveis contagiantes de experimentalismo. Não é minha intenção misturar os textos "mais sérios" com as minhas "bobagens diárias". E que fique bem claro isso. O primeiro trabalho já está pronto para pousar aqui. Aguardem. Mais um pouquinho...